- Chá.
- Você não bebe chá.
Coloco a água para ferver e acompanho, com o canto do olho, um movimento.
- Bom, eu não bebia chá.
Estralo o pescoço, coço a cara, mordo a boca.
- Você sabe que tudo aqui está uma senhora mentira, né? Você entende que o que mais tem acontecido é uma mentira generalizada?
- Pranayama.
- Respiração? – Ela ri. Alto, arrogante – Não vai funcionar. Não funcionou ontem.
- Ontem eu não tomava chá.
Observo a água enquanto sinto seus olhos me queimando.
- Ontem você não dormiu.
Touché.
Eu a encaro. Ela sempre calma, arrogante, brilhante. Admirar nossos adversários é diferente de temê-los, seremos claros.
- Ontem eu roia unha. Ontem eu saí da aula. Ontem eu não meditei. Ontem eu fugi.
- E onde você acha que isso vai parar?
- Sinceramente?
- Por favor.
Ela se senta com um riso leve no rosto, como se esperasse uma piada em um show de talentos.
- Eu não acho que isso vá parar algum dia.
O riso agora é mais claro do que nunca:
- Então, no fim, eu ganho?
- Eu não disse isso.
- O que você disse, então?
- Você, que mora dentro da minha cabeça, não sabe?
Ela ajeita o vestido vermelho e se apóia sobre uma mão:
- Talvez eu saiba, mas você disse que falar te ajuda. Estou tentando te ajudar.
Tentando me ajudar? Arregalo os olhos, perplexa:
- Como você pode estar tentando me ajudar?
- Eu deixo toda a sua atenção à flor da pele. Você toma mais cuidado, se cuida melhor, escreve melhor. Eu faço bem para você.
Estou incrédula.
- Não pode ser verdade isso...
- Não foge. Onde você acha que isso vai parar?
Eu a encaro. Assim como ela, eu também tenho uma raiva transbordante. Afinal, querendo ou não, por hoje, somos uma só:
- Se você fosse, de fato, uma pessoa, o final da história seria seu corpo enterrado a sete palmos, mas você não é. A nossa guerra é minha, e só minha. Isso não vai parar porque, se parar, quer dizer que eu desisti.
Ela me olha nos olhos, dessa vez sem sorrir, enquanto eu continuo:
- Você não me ajuda quando me faz perder a noção de tempo. Você não me ajuda quando me acorda às 4h da manhã simplesmente porque quer. Você é forte, confiante, excelente em seja lá o que você é. Você nem sequer é algo físico! Eu te materializei alguém que eu quero ser quando você desaparecer de dentro de mim.
- Isso não vai acontecer.
- Você não sabe.
- Eu já ouvi isso antes.
- E eu já fui eu mesma antes. Antes de deixar você crescer. Hoje a sua força é quase maior do que eu. Quase.
- Eu sou maior.
- Não, você não é.
Ela se levanta e vejo raiva nos seus olhos. Sinto um prazer estranho de reconhecer minha própria raiva. Ela fica de frente comigo, me encarando, achando que, com o tempo, vou abaixar a cabeça. Não dessa vez.
Ela sorri bem devagar:
- Sua água está fervendo.
Desligo o fogo e coloco a água na minha caneca favorita. O cheiro de chá domina a cozinha enquanto eu a faço desaparecer. Pego uma colher de açúcar enquanto sinto uma força vindo de dentro de mim:
- Não dessa vez.
*
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