domingo, 3 de setembro de 2017

Não dessa vez

- Você sabe o que você ta fazendo?

- Chá.

- Você não bebe chá.

Coloco a água para ferver e acompanho, com o canto do olho, um movimento.

- Bom, eu não bebia chá.

Estralo o pescoço, coço a cara, mordo a boca.

- Você sabe que tudo aqui está uma senhora mentira, né? Você entende que o que mais tem acontecido é uma mentira generalizada?

- Pranayama.

- Respiração? – Ela ri. Alto, arrogante – Não vai funcionar. Não funcionou ontem.

- Ontem eu não tomava chá.

Observo a água enquanto sinto seus olhos me queimando.

- Ontem você não dormiu.

Touché.

Eu a encaro. Ela sempre calma, arrogante, brilhante. Admirar nossos adversários é diferente de temê-los, seremos claros.

- Ontem eu roia unha. Ontem eu saí da aula. Ontem eu não meditei. Ontem eu fugi.

- E onde você acha que isso vai parar?

- Sinceramente?

- Por favor.

Ela se senta com um riso leve no rosto, como se esperasse uma piada em um show de talentos.

- Eu não acho que isso vá parar algum dia.

O riso agora é mais claro do que nunca:

- Então, no fim, eu ganho?

- Eu não disse isso.

- O que você disse, então?

- Você, que mora dentro da minha cabeça, não sabe?

Ela ajeita o vestido vermelho e se apóia sobre uma mão:

- Talvez eu saiba, mas você disse que falar te ajuda. Estou tentando te ajudar.

Tentando me ajudar? Arregalo os olhos, perplexa:

- Como você pode estar tentando me ajudar?

- Eu deixo toda a sua atenção à flor da pele. Você toma mais cuidado, se cuida melhor, escreve melhor. Eu faço bem para você.

Estou incrédula.

- Não pode ser verdade isso...

- Não foge. Onde você acha que isso vai parar?

Eu a encaro. Assim como ela, eu também tenho uma raiva transbordante. Afinal, querendo ou não, por hoje, somos uma só:

- Se você fosse, de fato, uma pessoa, o final da história seria seu corpo enterrado a sete palmos, mas você não é. A nossa guerra é minha, e só minha. Isso não vai parar porque, se parar, quer dizer que eu desisti.

Ela me olha nos olhos, dessa vez sem sorrir, enquanto eu continuo:

- Você não me ajuda quando me faz perder a noção de tempo. Você não me ajuda quando me acorda às 4h da manhã simplesmente porque quer. Você é forte, confiante, excelente em seja lá o que você é. Você nem sequer é algo físico! Eu te materializei alguém que eu quero ser quando você desaparecer de dentro de mim.

- Isso não vai acontecer.

- Você não sabe.

- Eu já ouvi isso antes.

- E eu já fui eu mesma antes. Antes de deixar você crescer. Hoje a sua força é quase maior do que eu. Quase.

- Eu sou maior.

- Não, você não é.

Ela se levanta e vejo raiva nos seus olhos. Sinto um prazer estranho de reconhecer minha própria raiva. Ela fica de frente comigo, me encarando, achando que, com o tempo, vou abaixar a cabeça. Não dessa vez.

Ela sorri bem devagar:

- Sua água está fervendo.

Desligo o fogo e coloco a água na minha caneca favorita. O cheiro de chá domina a cozinha enquanto eu a faço desaparecer. Pego uma colher de açúcar enquanto sinto uma força vindo de dentro de mim:


- Não dessa vez.


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